Flavio Cruz

O oitavo dia

 

E havendo Deus acabado no dia sétimo
a obra que fizera,
descansou no sétimo dia
de toda a sua obra, que tinha feito.
Gênesis 2:2
 
No oitavo dia,
o homem assumiu o que Deus tinha criado.
E foi então que tudo começou.
 
E eu me vi, de repente, ali naquela rua sombria, toda cinza, andando e olhando para as vitrines. Não havia cor nas pessoas, não havia cor nas coisas. Não tinha pressa, nem sabia para onde ia. Não sabia meu nome, minha idade, minha profissão. Havia uma ausência mental. Os outros, pareciam também estar na mesma situação em que eu estava. Autômatos, sombrios, sem rumo, perdidos na paisagem urbana.
Aos poucos, porém, uma casa e uma mulher apareceram em minha mente. Era para lá que eu ia. Estava indo sem saber onde era. Agora já sabia, estava voltando de algum lugar. E esse lugar era meu local de trabalho. Um trabalho que eu fazia sem saber o que era. Tinha uma profissão que não sabia onde tinha aprendido.
Cheguei em casa, abri a porta e entrei. A mulher, acho que era minha esposa, estava esperando com o jantar na mesa. Não havia cheiro, não havia sabor e ela não tinha nome. Sentamo-nos, comemos a comida insípida, ficamos em silêncio e logo a seguir fomos dormir.
Não houve sonhos. Nem bons, nem pesadelos. Foi meu primeiro dia.
No dia seguinte, acordei e saí. Andei dois quarteirões, tomei um ônibus e depois de quarenta minutos, desci. Era o meu local de trabalho. Entrei e comecei a trabalhar. Ninguém falou comigo, nem eu falei com ninguém. Nesse segundo dia, porém, já havia cor. Era esmaecida, muito fraca, mas, definitivamente, a paisagem estava colorida. Senti, pela primeira vez, um pouco de cheiro. Agora as pessoas já falavam, embora eu não as ouvisse.  O trabalho terminou e peguei o ônibus de volta. Desci e comecei a andar de volta para casa. As pessoas tinham cor e as coisas também. Quase total, mas ainda faltava um pouco. Em casa, minha esposa me recebeu com um ligeiro sorriso. Ela me esperava para jantar. Falou algumas coisas, mas as palavras não saíram de sua boca. Acho que ela sentia as coisas como eu, ou seja, não sentia as coisas. Nesse segundo dia, vimos um pouco de tevê. As histórias não faziam sentido, as personagens de uma história apareciam em outra e os comerciais rodavam de trás para frente. Ela se levantou e eu também. A televisão se desligou sozinha. Acho que ela falou boa noite. Ela, a televisão. Não respondi, pois sabia que aparelhos não fazem essas coisas. Dormi sem sonhar e acordei para o terceiro dia.
Logo ao sair de casa, percebi que havia vários sons nas ruas. Eles estavam misturados. Havia sons de perto e sons que pareciam vir de muito, muito, longe. Havia pedaços de músicas, conversas, gritinhos, sorrisos e gargalhadas. Todas misturadas, porém. Misturadas e interrompidas. Algumas pessoas me olhavam. Umas pareciam surpresas, outras nem tanto. Andei, tomei o ônibus e desci. Entrei no prédio onde trabalhava. Ainda não me lembrava onde aprendera meu ofício, nem quando. Não sabia meu nome, mas sabia que tinha um. Quando abri a porta, vi que tudo estava modificado. Era um salão enorme, com dezenas e dezenas de cadeiras, colocadas em círculo. Quase todas estavam ocupadas. Uma, uma só, parecia transparente. Era a minha. Algumas pessoas conversavam, outras não. Algumas tinham cor, outras eram cinza. Ninguém parecia se importar. Eu também não me importava. Começaram a chamar nomes. Cada um que era chamado, se levantava, caminhava até uma porta de vidro. Esta se abria automaticamente e a pessoa entrava. E foram chamando. Não conhecia aqueles nomes, não conhecia aquelas pessoas.  Em determinado momento, chamaram um nome e ninguém se levantou. Chamaram de novo e nada. Notei, então, que todos olhavam para mim. Era meu nome, percebi. Levantei-me e fui até a porta de vidro. Não me lembrava do nome que tinham chamado. Perdi a chance de saber meu nome.
Do outro lado da mesa, um senhor de chapéu preto, bigodes grandes e óculos redondos olhava sério para mim. Depois começou a falar, falar. Mas sua voz não saía. Ou eu não escutava. Começou a perder a paciência comigo. Colocou os papéis de lado, olhou bem para mim e perguntou algo. Como eu não estava ouvindo nada, não sabia o que estava perguntando. Desconfio que queria saber meu nome. Quando eu tentava ler seus lábios, a visão ficava confusa e eu me perdia. Depois de algum tempo, alguém veio por trás, bateu no meu ombro e fez sinal para eu sair. Foi bom, porque o homem estava realmente nervoso. Fiz tudo igual, tudo de novo. Chegando em casa, a minha mulher abriu a porta antes mesmo de eu tentar. Acho que ela estava me esperando. Ela não precisou falar nada, percebi que estava triste e decepcionada. Tinha a ver com o fato de eu não conseguir responder às perguntas do homem de bigode. Isso eu sabia. Depois nos deitamos. Na cama, ela se aproximou de mim. Acho que queria alguma coisa. Talvez quisesse que eu a tocasse. Achei que seria perigoso. Fiquei quieto. O terceiro dia estava para terminar.
 Logo a seguir dormimos para acordarmos no quarto dia. No meio de tanta confusão, não sei por que eu continuava a contar os dias. Acho que era importante. Acho que havia algum prazo. Não tinha certeza, mas acho que havia.
O quarto dia foi rápido. Não havia a grande sala, não havia pessoas sentadas. Todo mundo, perto de mim estava trabalhando. Era dia de trabalho duro. Ninguém falava. O homem de bigode não estava lá. Acho que ele só vinha quando havia a grande sala de reuniões e no quarto dia não havia sala de reuniões. Talvez porque fosse dia par. Será que ele só vinha em dias ímpares? Isso não fazia sentido nenhum. Nem para mim. O quarto dia acabou sem surpresas. As pessoas na rua, no meu caminho de volta para casa, estavam cinzas naquele dia. Só um casal, sentado na calçada, tinha cores. Eles estavam se beijando. Quando cheguei em casa, minha mulher também estava colorida. Mas só ela, as coisas dentro da casa eram de cor cinza. Ela estava sorridente. Ela não falou nada, mas eu sabia que era porque, no dia seguinte, o homem de bigode estaria lá. Ela estava achando que eu ia me sair bem. Que ia conseguia dar as respostas. Que ideia, isso não fazia sentido nenhum. Nós fomos para a cama e dormimos logo. O quarto dia estava acabando.
Durante a noite, sonhei uns sonhos bons. Com ela, a minha mulher. Acho que coisas aconteceram, mas eu não tenho certeza. De manhã, ela estava bem feliz. Acho que, definitivamente, algo aconteceu. E ela estava mais colorida do que nunca. Cores exuberantes. Eu tinha certeza de que alguma coisa tinha acontecido durante meu sonho. Foi com esses pensamentos que comecei o meu quinto dia. Antes de descer do ônibus, eu já sabia. Aquele dia era dia do homem de bigode. Eu achava que naquele dia eu ia dar certo. Estava prestando atenção. Estávamos todos sentados, esperando a chamada começar. Falaram o primeiro nome, ninguém se levantou e todo mundo estava olhando para mim. Não tive dúvidas, dei um pulo da cadeira. E todo mundo, que antes estava cinza, de repente ficou colorido. Foi só eu me levantar. Achei que aquilo era poder. Podia enfrentar o homem de bigode. E de chapéu. Entrei.
Foi o maior susto. O homem estava com um chapéu vermelho, cor de sangue. Doido. O bigode tinha ficado ruivo. Acho que ele fez aquilo para me assustar, para me testar. Funcionou. Saí correndo, não olhei para ninguém na sala e fui pegar o ônibus de volta para casa. Nem me lembrei de olhar se as pessoas estavam cinzas ou coloridas. Estava envergonhado de meu susto, estava assustado com minha vergonha. A mulher minha, cujo nome nunca soube, ela estava chorando. Soluçava e eu conseguia escutar e entender seus soluços. Eram todos por mim. Cem por cento. Ela sabia que eu tinha falhado. Foi então que descobri o que era óbvio. O homem de bigode era muito importante. Tudo dependia dele. Quem mandou ele mudar de chapéu? Ou será que era o mesmo chapéu, molhado de sangue? Nunca vou saber. Nessa noite, fim do quinto dia, até eu conseguir dormir, minha mulher, acho que era minha, não parou de chorar. Ela nem tentou me tocar. Nem na vigília, nem nos sonhos.
Acho que era o sexto dia, estava começando a perder as contas. Mas só podia ser o sexto, porque um dia antes, tinha sido o quinto, e o sexto vem depois dele. Sempre foi assim. Era dia de trabalho, eu tinha certeza. Trabalho duro. Na fábrica, estava todo mundo colorido, havia uma vibração no ar. Sentia cheiros, sentia brisa, sentia calor, sentia tudo. Ninguém falou nada, entretanto. Eu, de qualquer forma, não iria entender, pois não conseguia ouvir nada. Saí no horário certo, peguei o ônibus e desci perto de casa. Só depois que desci, que reparei que o ônibus estava sem motorista. Coisa louca! Como ele conseguiu chegar? Se pudesse falar, eu perguntaria para minha mulher. Quando cheguei, já quase à noite, ela estava me esperando fora de casa, linda, vestindo um maravilhoso vestido azul. Tinha pintado os cabelos de loiro e havia desejo em seu olhar. Em seu corpo também, podia garantir. Nem sei como ela podia ter preparado comida tão gostosa. Uma comida divina.  Jantei gostoso. E ela me serviu vinho. O vinho, além de ser vinho, tinha um gosto gostoso de uva.  Bebi muito, ela não parava de servir. Fiquei tonto. Só me lembro de ela me beijar, ali mesmo, na sala. Depois, tudo apagou. Acho que foi assim o fim do sexto dia, provavelmente uma sexta-feira. Certeza ninguém tinha, muito menos eu.
Acordei, no dia seguinte na minha cama. Era o sétimo dia, com certeza. Mesmo que não fosse. Estava atrasado, saí correndo para a fábrica. Desta vez havia motorista. Por trás, curiosamente, ele se parecia com o homem de bigode. Na hora de descer. Dei uma olhada, mas ele não tinha bigode.  Fora isso e o chapéu, bem que ele podia ser o homem lá de dentro. Era o sétimo dia, como eu disse, e isso era importante. Não podia falhar.
Entrei na sala, todas as cadeiras estavam vazias. Sentei-me numa delas. Uma espécie de ajudante me apontou uma outra cadeira, pois aquela não era minha. Obedeci. Não fazia sentido, porém, uma vez que todas estavam desocupadas. Quis falar algo, mas desisti. Ele não iria entender e, mais importante, minha voz não iria sair. Chamaram o primeiro nome, nem prestei atenção e já fui me levantando. Coisa lógica, só eu estava lá. Erro. Era o nome de outro alguém. Chamaram mais de vinte nomes até chegar o meu. Se eu não estivesse tão assustado, poderia ter aprendido meu nome. O ajudante teve que me avisar que era minha vez. Eu cheguei a me lembrar do nome, mas logo a seguir, me esqueci de novo. Entrei.
Aquele homem era mesmo cheio de surpresas. Estava lá, sem chapéu, sem bigode. Foi então que percebi que ele e o motorista eram a mesma pessoa. Isso me deixou agitado de novo. Olhei pela janela e vi que o ônibus estava estacionado no pátio da fábrica. Isso sim, fazia sentido. De todas as coisas até agora, esta era a que mais fazia sentido. Se minha voz saísse, eu poderia contar isso para minha mulher. Eu havia me sentado e dessa vez conseguia entender o que ele estava falando. Muito bem.
Ele me perguntava qual era meu nome, qual era minha profissão. Eu entendia o que ele falava, mas não adiantava nada, pois não sabia a resposta. Ele falou que ia me dar sete chances e sete vezes me fez a mesma pergunta. Pura coincidência, mas era o mesmo número de dias que eu estava vivendo por ali. Uma chance para cada dia.  Ele me perguntou pela sétima vez e eu não pude responder. Com tantas chances que tive de saber meu nome, em nenhuma delas consegui aprender. Parece mentira, mas era a pura verdade. Parecia um pesadelo. É verdade que eu também não sabia minha profissão, embora tivesse trabalhado ali na fábrica durante vários dias. Teria sido fácil se eu tivesse perguntado para alguém do meu lado, o que eu estava fazendo. O que a pessoa dissesse, seria minha profissão. Enfim, não sabia nenhuma das duas respostas. Ele fez um gesto de enfado e apontou a porta. Fui saindo e fui pensando no choro da minha mulher quando chegasse. Ia ser triste. Na volta, o motorista era um índio e me deixou fora do ponto. Tive que andar mais. E foi triste, pois tudo estava cinza como no primeiro dia. Talvez ainda fosse mesmo o primeiro dia e eu tivesse sonhado os outros seis. Não sei. Tudo estava sem cor. Era tão parecido que acho mesmo que era o primeiro dia de novo. Quando cheguei em casa, tive certeza. Aquele era o primeiro dia, de novo. A mulher estava do mesmo jeito, tudo igual. E eu já sabia que iria ter de passar pelos sete dias, mais uma vez. Ela está cansada da repetição. Coitada. Acho que ela quer me ajudar, mas não pode. Está presa, como eu, nesses sete dias. E esses são meus sete dias e não dela. Mas acabam se tornando os dias dela também.
Penso às vezes, que existe uma explicação para tudo isso. Deve haver. Deve haver uma conexão entre os dias, entre as cores, entre as pessoas. Eu só não acho justo eu não saber meu próprio nome. Outra coisa bastante injusta é minhas palavras não saírem. Elas saem na minha cabeça, mas não saem da minha boca. Não se articulam. Injusto também é o fato da mulher ter de ficar esperando em casa, meus sete dias se passarem. Que culpa ela tem?  Será que ela, pelo menos, sabe meu nome?
Eu só contei esta história para ver se você pode me ajudar. Eu nem sou de contar histórias, como acabei de dizer, fiz isso por pura necessidade. Você consegue entender o que está acontecendo? Eu estou completamente perdido. Você sabe meu nome?  Minha profissão? Por que as coisas não estão dando certo? Se souber, por favor, me responda! Estou precisando de ajuda, muita ajuda.
Talvez você possa me salvar, mesmo não sabendo meu nome, mesmo não sabendo quem eu sou. Eu só não posso ficar repetindo os meus sete dias.  Você, que lê esta história, tudo o que você precisa fazer, é me levar para o oitavo dia. Você pode? Você pode fazer isto por mim? Agora só tenho um objetivo, o oitavo dia. O oitavo dia é o segredo de tudo. Depois disso, as coisas vão andar, tudo vai dar certo. O meu nome eu não sei, mas isso eu sei, e é tudo que sei.
 

 

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Published on e-Stories.org on 14.12.2016.

 
 

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