Flavio Cruz

Mil anos depois



Tarkus olhou pela janela de seu apartamento e repetiu para si mesmo que já era tempo de ministrar a “Grande Lição” para seu filho Sirak. Essa tradição já durava séculos e certamente era uma das coisas mais importantes, não só para a educacão dos jovens, como também para a reafirmação social da nova civilização. Além disso, Sirak estava mais do que preparado para o acontecimento. Era inteligente, curioso e interessado. Seu pai já o havia alertado para a ocasião e ele estava na expectativa. Todos os garotos de 12 anos esperavam por esse momento. Além de ser especial em si, era como um ritual de passagem e dava ao “noviço” uma série de direitos e privilégios.
Finalmente chegara o dia de Sirak. Seriam 7 horas de conversa com seu pai Tarkus. Essa era a “Grande Lição”. Era uma coisa de pai para filho e havia toda uma preparação. Comeriam só pratos leves e, pela primeira vez, ele poderia tomar uma bebida ligeiramente alcoólica. Ao meio-dia sentaram-se junto a uma mesa da sala e Tarkus começou a sua fala:
-Sirak, meu filho, você vive num mundo maravilhoso agora, mas você não sabe como chegamos até aqui. Muita coisa aconteceu. Coisas que você acha absolutamente normais, são preciosas conquistas que nossos pais conseguiram com luta e sacrifício. Eu não quero assustar você com as coisas que vou contar.  O objetivo é apenas evitar que nossos filhos e filhos de nossos filhos cometam os mesmos erros de nossos antepassados mais distantes. Como disse, não quero assustar você, mas coisas horríveis, além da imaginação, aconteceram há séculos atrás. Sirak, você certamente sabe quantas pessoas há no mundo hoje, certo?
-Claro, meu pai. Cerca de 118.000.000 de habitantes espalhados nas 11 zonas habitacionais do planeta.
-Muito bem, isso mesmo. Você sabe também que esse número variou muito pouco nos últimos 200 anos.
-Sim, alguns milhares a mais ou a menos, conforme a década.
-Há 970 anos atrás, no ano 2000, você sabe quantas pessoas havia na Terra?
-Ainda não estudamos isso, meu pai.
-Eu sei. Essas coisas só se ensinam depois da “Grande Lição”. Pois bem, no final do século 20 havia cerca de 6 bilhões de pessoas no mundo.
Sirak olhou assustado. Havia uma grande interrogação em seu rosto. Parecia absurdo. Não poderia haver lugar para tanta gente...Pelo menos, não do jeito que a vida era agora.
-O que aconteceu?
-Ainda não, meu filho, nós vamos chegar lá. Antes, há outras coisas que quero explicar. Você já conhece cinco das onze zonas habitacionais. Você deve ter notado que os habitantes não são muito diferentes de nós. Quero dizer, a cor da pele, o tipo físico, enfim, tudo. Nos tempos antes do Grande Evento as pessoas eram diferentes, muito diferentes umas das outras, nas diversas partes do mundo. Havia pessoas completamente negras, outras vermelhas, brancas, e com outras tonalidades de cores.Os formatos do rosto e o tipo físico eram bem variados. Era o que eles chamavam de raça. Não havia harmonia como agora. Muitas vezes um ódio enorme crescia entre eles, gerando destruição, morte e guerra.
Tarkus então mostrou filmes de pessoas falando estranhas línguas. Algumas lembravam o idioma que eles falavam agora.
Os olhos de Sirak estavam estatelados ao ver as fotos e imagens que seu pai mostrava. Parte delas estavam num grande livro, outras iam se sucedendo na tela do computador. Pessoas e roupas estranhas. Pessoas mutiladas. Violência e sangue. Se o objetivo de Tarkus era impressionar o filho, certamente ele estava conseguindo. Ele estava começando a ficar assustado ao entrar naquele reino até então desconhecido. Essa era a ideia da “Grande Lição”. Os principais fatos, histórias e imagens de antes do “Grande Evento” não estavam à disposição do público em geral e muito menos das crianças e jovens. O objetivo era não banalizar os horrores que aconteceram na segunda metade do século vinte e começo do vinte e um. A descrição do “Grande Evento”, o que realmente acontecera, suas consequências, só eram revelados nesse dia especial. O mistério envolvendo este costume era muito importante na formação de todos os humanos.
Durante quase quatro horas Tarkus relatou as barbaridades ocorridas de 1900 a 2030, data do “Grande Evento”. Passou pelas duas grandes guerras mundiais, pelo holocausto, outras guerras, fanatismo, terrorismo, injustiça social, fome...Falou também das coisas boas: a ida do homem à Lua, do avanço científico e tecnológico, do controle das pestes, do avanço da medicina, etc. Explicou como era o fanatismo religioso que levava as pessoas à destruição de seus semelhantes. Falou do ódio de nações inteiras contra outras, da escravidão que alguns impunham a outros seres humanos, às mulheres. Sirak mal podia acreditar no que estava ouvindo. Ele sabia que as revelações da “Grande Lição” seriam chocantes, mas não imaginava quanto.
Ele sentiu por alguns momentos como se uma nuvem negra estivesse invadindo seu cérebro, sua mente, o mundo em que vivia. A civilização atual era extraordinária, embora em alguns aspectos pudesse parecer extremamente controladora. No entanto, ninguém sentia ódio. A religião havia sido completamente banida, embora houvesse a noção de Deus, de um Criador. As pessoas podiam falar, escrever sobre a maneira como viam a criação, mas não podiam formar religião, cultos ou seitas em volta de suas crenças.
Logo depois do Grande Evento, os poucos seres humanos que restaram, começaram a formar famílias, juntando raças completamente diferentes. A princípio era praticamente uma necessidade. Depois virou um programa de governo. Quase mil anos depois, tinham uma raça única sem religiões ligadas a elas. Isso, por si só, reduzia enormemente a possibilidade de conflitos. A língua era uma só, uma espécie de mistura dos antigo Inglês com línguas latinas e alguns elementos de línguas asiáticas. O governo que se formou logo após a grande tragédia resolveu eliminar definitivamente tudo que pudesse se relacionar ao passado e ao horror relacionado a ele.
Depois de um silêncio prolongado. Sirak perguntou:
- Essas pessoas todas, quero dizer, nossos antepassados, eles eram mais avançados que nós?
-Quando tudo aconteceu, ficou pouco da imensa tecnologia que eles tinham. Os sobreviventes não chegavam a dois milhões de seres espalhados pelo planeta. Felizmente havia grandes inteligências e grandes cérebros entre eles. Ainda assim, foram quase mil anos para se chegar ao mesmo nível em que a humanidade estava naquele fatídico mês de 2030.
-Pai, o senhor está falando agora do “Grande Evento”?
-Sim, meu filho, é disso que estou falando.
Diante da cara de interrogação de Sirak, Tarkus continuou:
-Foi no mês de fevereiro de 2030. A tensão entre os países islâmicos e as grandes potências europeias e Estados Unidos estava chegando a um ponto irrecuperável. A China e a Coreia do Norte estavam com problemas econômicos insuperáveis depois da grande pressão americana para recuperar sua hegemonia. Havia problemas tão grandes e tão graves que os menores, como ataques cibernéticos e terrorismo, haviam passado para um segundo plano. Foi aí que a tudo começou. Aproveitando-se dessa confusão total, terroristas se juntaram a “hackers” e num mesmo dia atacaram todas as redes mundiais de comunicação de ambos os lados. O ataque cibernético foi tão volumoso e tão poderoso que os governos europeus e o americano resolveram reagir em conjunto. Era sabido que os ataques desse tipo haviam sido patrocinados pela Coreia e pela China. Lançaram ataques massivos contra eles e alguns países árabes. Ao mesmo tempo estavam acontecendo atentados terroristas no mundo inteiro.
Foi um mês de caos. Foi usado praticamente todo o arsenal atômico que restara dos acordos de desarmamento entre os anos 2018 e 2027. Incêndios monstruosos, ataques nucleares, armas químicas, tudo estava acontecendo ao mesmo tempo. A capacidade de socorro era inexistente. Uma guerra bacteriológica de abrangência mundial foi iniciada como último recurso para parar o conflito mundial. Foi efetiva no sentido de que realmente liquidou o pouco que havia sobrado de todas as partes envolvidas naquela luta insana.
Foram décadas até que os sobreviventes começaram a se juntar e recolher o que havia sobrado do avanço tecnológico da raça humana. Quase cinquenta anos mais tarde, depois de muito caos, começaram a se formar governos isolados. Logo eles começaram a se encontrar, fazer reuniões, com receio de se recomeçar uma nova fase de retaliação entre os sobreviventes. Tiveram sucesso depois de quase dois séculos. Negociaram coisas drásticas. Todos os tipos de armas foram proibidos. Encontros religiosos também. Organizaram melhor uma mistura de línguas que havia se formado anteriormente e a impuseram como oficial. Incentivaram casamentos e uniões familiares entre culturas diferentes para se formar uma “raça” universal. Cultivaram nas crianças, desde a mais tenra idade, o medo de conflito e a vontade de ser “igual” aos outros. Dividiram a Terra em onze “zonas habitacionais” e fizeram tudo que foi possível para mantê-las semelhantes. Era incentivada a viagem e contato entre as diversas zonas para evitar qualquer tipo de animosidade ou formação de “nacionalidade”.
Finalmente para se dar um ar de misticismo e respeito à paz, criou-se o dia da “Grande Lição”. Antes de começar a adolescência, todo ser humano passaria por essa espécie de ritual, onde aprenderia e tentaria conservar para sempre a ideia fundamental da harmonia.
Essa nova raça havia renunciado a coisas básicas, partes essenciais das aspirações de um ser humano, em prol de uma vida sem guerras, sem animosidade. Além disso havia perdido quase mil anos de evolução científica e tecnológica. Estavam no ano 2970, era o mês de fevereiro. Tarkus e seu filho Sirak deram-se as mãos e ficaram em silêncio, meditando, para encerrar a “Grande Lição”. Ela terminava ali, mas a luta pela paz definitiva continuava lá fora, a apenas alguns anos do novo milênio que iria nascer. Pela janela do apartamento podia-se ver um avião, bastante parecido com as naves de dez séculos atrás, cruzando o azul quase escuro do céu, naquele lindo começo de noite. Havia poucos deles agora. Carros também semelhantes aos modelos do início do século 21 trafegavam na avenida lá embaixo. Ao redor do conjunto habitacional havia muito verde, muito espaço. A tranquilidade e o sossego podiam ser respirados no ar.
Finalmente o homem havia conseguido a paz no mundo. Custou quase seis bilhões de vidas e quase mil anos de planejamento e reconstrução. Mas valeu a pena. Certamente Tarkus sabia disso. Podia-se ler em seu rosto, brilhante e sereno, enquanto ele encerrava a cerimônia da “Grande Lição” e afagava a cabeça de seu filho Sirak, um novo príncipe dos novos tempos, um novo príncipe da paz.
 

 

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Published on e-Stories.org on 03.07.2015.

 
 

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