Flavio Cruz

Adams e Évora, a história recontada


Adams vivia de graça numa fazenda onde havia muitas árvores frutíferas, animais de todos os tipos, inclusive aves e répteis. Não tinha do que reclamar. Um dia porém, quando acordou, estava com uma tremenda dor no lado do corpo. Havia uma grande cicatriz. Já estava seca e fechada, mas ficou pensando no que poderia ter acontecido. Naquela época, ele ainda não sabia das coisas, então não desconfiou de nada. Por coincidência, no mesmo dia, mais tarde, apareceu uma mulher – ele ainda nem sabia o que era mulher – que dizia se chamar Évora. Ela não pediu, nem nada, chegou como se fosse dona da fazenda também, nem o Adams era, e ficou por lá. Ele não era muito de conversar, então a Évora não teve outra saída a não ser conversar com os bichos mesmo. Não sei como ela fazia, mas conseguia se comunicar. Imaginem vocês, até com a cobra ela batia papos intermináveis.
O fato é que, bem no meio da fazenda, havia uma árvore enorme, altíssima. Acho que era uma macieira e estava carregadíssima de frutos. O Adams não era muito de conversa, mas mesmo assim, os bichos passaram a contar coisas para ele. Falaram que ouviram alguém falar que a Évora falou que a cobra tinha dito para ela, ufa, que as frutas da grande árvore, eram proibidas, mas muito gostosas. Não sei como esse pessoal já sabia, desde aquela época, que coisas proibidas são mais gostosas. Para falar a verdade, o Adams nem sabia que aqueles frutos eram tão importantes. Na fazenda tinha tanta fruta, algumas praticamente iguais àquela, que diferença podia fazer? Além disso, ultimamente, o Adams tinha se ligado em comer peixe, o que ele achava uma delícia.
O problema era que, quando o povo começa com uma coisa, não tem jeito de parar. Veio um pássaro mais sábio que todo mundo e avisou que se ele e a Évora comessem daquela árvore, ia ser um problema. Que as coisas todas iam parar de crescer. Ele ia ter que plantar as próprias árvores, esperar crescer, para depois comer as frutas. Falou até que ele ia ter de suar, mas essa parte ele não entendeu.
Adams perguntou qual seria a vantagem de fazer isso? Claro que não tinha a menor intenção de comer do fruto proibido. Daí, então, ela explicou, que, por outro lado, ele ia conhecer todas as coisas, ia ser sábio. Dentro da árvore, havia uma coleção incalculável de livros, sobre todos os assuntos, sobre todas as coisas.
Não era nem para pensar, estava claro que aquilo era um absurdo. Livros? Adams não tinha a menor ideia do que era aquilo. Não que fosse ignorante, embora ele fosse também. No bom sentido, que ignora, que não sabe. O que quero dizer, é que ele não tinha conhecimento dos livros porque eles não tinham sido inventados ainda. Claro que o pássaro então explicou que mais tarde, muito mais tarde, um tal de Godofredo – acho que era isso – ia inventá-los.
O que pegou mesmo foi o que o Adams pensou... Se dentro da árvore existem todos os ensinamentos, lá vai haver a explicação também de como contornar essa história de ter de plantar tudo de novo, que absurdo, se tudo já estava plantado. De qualquer jeito estava bem: comendo ou não comendo da árvore.
Foi aí então, que, na noite seguinte, a Évora chegou perto dele e fez um dengo. Ele nem sabia o que era isso. Achou interessante e pensou que talvez ... Bem até que a Évora era interessante. Essa danada era muito esperta e logo percebeu onde estava a cabeça do Adams. Então, com muita graça, mostrou a mão, que até então escondera atrás do corpo, com uma maçã já mordida. Adams desconfiou, por motivos vários, que aquela era uma fruta da árvore proibida.
Antes de continuar, queria explicar que, nem ele nem ela, sabiam que estavam nus. Na verdade, eles eram nus. Isso não era relevante na época. Depois passou a ser e, muito, muito tempo depois, começou a ser irrelevante de novo... Mas vamos voltar ao que interessa.
Era óbvio que Évora queria que Adams desse uma mordida. Ele relutou e deu um monte de razões para ela, para não fazê-lo. Ela sorriu. Eu desconfio que ela já sabia o que era nudez a essa altura. Sorriu e explicou para ele, que tanto fazia, pois a maçã já estava mordida mesmo e se algo acontecesse, ela era a responsável.  Além disso, havia a história de “toda a sabedoria”, etc. etc.... Tudo isso deu um nó na cabeça do Adams e, quando ele percebeu, estava comendo toda a maçã.
De nada adiantaram os argumentos todos. Foram expulsos os dois. O Adams alegou que a maçã estava já mordida e Évora alegou que não foi ela que mordeu primeiro, tinha sido o macaco. Que besteira, pois todo mundo sabia que macaco não contava, pois ele não tinha virado homem ainda, era irracional.
No outro dia, Adams voltou até a fazenda para reclamar os livros a que tinha direito, afinal de contas, regra é regra. Pediu também um adiantamento de frutas, pois ninguém tinha avisado para ele que as árvores demoram tanto para crescer. Foi atendido em tudo. O dono da fazenda era muito justo e correto.
Ele estava confuso. Sabia que algo enorme tinha acontecido. Por outro lado, algumas coisas eram bem interessantes. Percebeu que agora Évora usava roupas e que dava uma vontade enorme de vê-la sem elas. Nunca pensou que uma coisa tão simples fosse tão boa.
A má notícia que teve, foi que os bichos todos avisaram que não iam trabalhar. Primeiro eles eram irracionais e segundo, eles não comeram da fruta. Não tinham nada a ver com isso, aquilo era um problema dos dois. No fim convenceram o tal do burro que ele tinha de ajudá-los. Ele, como não tinha nada para fazer, concordou.
Depois teve um papo muito sério com a Évora. Ficou bem claro que ela era a grande culpada e que ela o tinha enganado. Tudo bem que agora ele tinha interesse nela, pois ela era, assim, tão boa como uma fruta. Para dizer a verdade, muito melhor que qualquer fruta. Mesmo assim, ela teria de começar a plantar e cuidar de tudo em casa. Ele tinha uma grande obra a realizar. Tinha de aprender a ler e depois repassar todos aqueles livros para ver como poderia viver sem ter de plantar, colher, etc. aquela chatice toda. Tinha de haver algum jeito.
E assim fez. A Évora trabalhava e ele estudava. Ela reclamava muito mas ele deixou claro que as coisas não iam mudar tão cedo.
Demorou muito. Adams teve de ler tanta besteira até chegar nos livros certos, você nem imagina. Cada história boba, coisa sem sentido. Leu até um livro de Direitos Humanos e um sobre os Direitos da Mulher. Como esse pessoal perdia tempo em escrever todas essas coisas tolas. Claro, ele nem comentou sobre esse último com a Évora – ela nem sabia ler – mas de repente ela poderia começar a ter ideias. E você sabe, ela era do tipo, ela que começou com a primeira ideia, não foi mesmo?
Antes de o Adams chegar no livro certo, outras coisas aconteceram. Com aquela história de eles gostarem de ficar sem roupa à noite – de dia não podia – a barriga da Évora começou a crescer e saíram dois outros iguaizinhos a ele, um mistério. Ele se assustou na época, mas depois aprendeu o que tinha acontecido com um livro sobre genética. Leu também um outro livro depois, explicando que dava para fazer a mesma coisa – quero dizer, os dois moleques, sem mesmo tirar a roupa. Claro que isso era uma besteira. Qual a vantagem?
Contei sobre os livros para dizer que finalmente o Adams leu um livro chamado “Constituição” e foi aí que as coisas ficaram muito claras. Em primeiro lugar, ele nunca poderia ter sido expulso da fazenda. Ele tinha direitos adquiridos. Segundo, não avisaram que ele podia reclamar – a palavra que eles usavam era “recorrer” – do que tinham feito com ele. Terceiro, ele nem sabia se a fruta que ele comeu era da árvore proibida. E assim foi. Era um absurdo tudo que tinham feito com ele. Seus direitos foram usurpados dezenas de vezes.
Ele tinha aprendido a escrever há um bom tempo. Escreveu a petição e deu entrada. Passou por um monte de juiz. Por falar nisso, sabe aqueles dois que saíram da barriga da Évora? Fizeram a maior confusão por aí. Roubo, briga e até morte. E o pior que um deles, até virou juiz – claro, o que não morreu, portanto o que matou -  e agora estava encarregado de dar um parecer na petição que ele fez.
Faz muito tempo que o seu caso está rodando por aí. Recurso daqui, recurso dali, impugnação. Não se sabe quando vai haver uma solução.
Ultimamente Adams tem pensado muito. Ele já não tem mais certeza de que quer ganhar o processo. Já pensou se o juiz despacha que ele tem razão, manda tudo voltar atrás, com todos os direitos, etc.? Provavelmente lá naquela fazenda, não vão deixar a Évora fazer com ele, tudo que ela faz agora. E o que ela faz é muito bom. Ou se deixarem, vai ser sem graça, como era no começo. No fundo, ele está torcendo para ficar tudo do jeito que está. Ë só a Évora não aprender a ler. Não vai ser nada bom ela saber do tal de “Direitos da Mulher” ... Vai ser um problema e, além disso, acho que ela vai ficar sem graça. Como ela era antes. Antes de comer a maçã...

All rights belong to its author. It was published on e-Stories.org by demand of Flavio Cruz.
Published on e-Stories.org on 01.07.2015.

 
 

Comments of our readers (0)


Your opinion:

Our authors and e-Stories.org would like to hear your opinion! But you should comment the Poem/Story and not insult our authors personally!

Please choose

Artigo anterior Próximo artigo

Mais nesta categoria "Sátira" (Short Stories em português)

Other works from Flavio Cruz

Gostou deste artigo? Então dê uma olhadela ao seguinte:

O profeta que perdeu as estribeiras - Flavio Cruz (Política & Sociedade)
El Tercer Secreto - Mercedes Torija Maíllo (Ficção científica)